por_Eduardo Fradkin • do_Rio
Jairo Guedz é reconhecido com um dos mais importantes guitarristas do heavy metal em atividade. Natural de João Monlevade, uma pequena cidade de 80 mil almas a pouco mais de 100 quilômetros de Belo Horizonte, ele ajudou a forjar na capital mineira, nos anos 1980, com o Sepultura, uma insólita cena heavy metal que em tudo contraria os clichês associados ao estado.
Desde 2020 no projeto The Troops of Doom, ele repassa o início e fala do que há de tão especial na cena mineira do “metal extremo”, como descreve:
“Quando faço turnês pela Europa, é comum me perguntarem que tempero temos em Belo Horizonte que torna o metal extremo feito na cidade tão único no mundo. Ele é mais agressivo, mais visceral. Acho que isso vem da carência de muita coisa e de um excesso de religiosidade e repressão. Aquela juventude, a nossa juventude, não aguentou engolir isso e explodiu.”

Jairo Guedz: 'é comum me perguntarem que tempero temos em Belo Horizonte que torna o metal extremo daqui tão único'
Tinha mais união. A gente rastelou um matagal para as gerações seguintes andarem num gramado florido.”
Comparando a cena dos anos 1980 com a de hoje, que avaliação você faz? Do que sente saudade e do que não sente?
JAIRO GUEDZ: Sinto saudade de uma coisa que é impossível resgatar, que é a inocência. Naquela época, tínhamos uma inocência que fazia com que nos apoiássemos mais. Apesar de algumas bandas terem, vez por outra, brigas ou dissidências, e por não haver redes sociais, era tudo dito na cara, a gente tinha mais união. Era um movimento ainda embrionário. A gente rastelou um matagal para as gerações seguintes andarem num gramado florido. Se você olhar as contracapas dos discos de metal extremo da (gravadora independente) Cogumelo, vai ver que muitas guitarras, baixos, cintos de balas e coletes jeans vão se repetir em várias bandas, porque a gente emprestava equipamentos, roupas e acessórios uns para os outros. Eu pegava a guitarra do Mutilator, o Paulo (Xisto, do Sepultura) emprestava o contrabaixo dele para o baixista do Armageddon, aí o cara do Overdose me emprestava a guitarra, e a gente pedia para tirar foto na bateria de Fulano... Isso é uma coisa legal que se perdeu com o tempo. Mas, ao mesmo tempo, eu não sinto falta da perseguição que a gente sofria. No início do movimento, o Brasil estava no finalzinho da ditadura. Mas, mesmo depois da redemocratização, ainda teve muita perseguição, e não só policial. Muitos músicos amigos nossos tiveram que desistir do sonho de ter uma banda, por causa dos pais, da família ou de casamentos. Alguns não sobreviveram a essas batalhas.
A repressão da polícia sempre foi muito intensa?
Sim. Eu apanhei muito, fui levado para a delegacia e para o trailer da polícia que ficava na Savassi, para o trailer que ficava na Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, porque eu usava cinto de bala, me vestia de preto, dava uns berros na rua e chutava umas latas de lixo. Estudei no colégio Santo Antônio, que era da Ordem Franciscana da Igreja Católica. Assim como o resto do pessoal do Sepultura, eu virei para a minha família e falei que não iria estudar mais, e todos nós largamos a escola para nos dedicarmos 24 horas à banda. Essa decisão teria um preço alto no futuro. A gente nunca participou de uma festa de 15 anos de algum amigo, a gente não foi à formatura da nossa turma, a gente não fez faculdade nem foi para o Exército. Muitos dos nossos amigos fizeram o ginásio, o científico e, depois, uma faculdade. Tinham bandas, mas elas ficavam em segundo plano, como um hobby, então não deixaram de tirar seu diploma e de se tornar advogados, médicos, engenheiros ou professores. No caso do Sepultura, não era um hobby. Foi uma decisão tomada aos 15 ou 16 anos de idade, de que seríamos músicos.

Contam-se muitas histórias de camaradagem entre as bandas mineiras, mas também havia rivalidade entre elas. Num podcast recente, você contou o caso de uma banda que praticamente sabotou um show do Troops of Doom.
Eu não quero, de forma alguma, citar o nome da banda. Isso já me deu até alguns problemas, mas eu não cito o nome da banda nem de pessoas, em momento algum. Sobre essa questão de sabotagem, isso me impressionou um pouco nos últimos anos, porque isso rolava, quando a gente era moleque, em relação às bandas gringas. Naquela época, para nós, elas eram gigantescas, independentemente de serem consideradas grandes ou não nos seus países de origem. Talvez nem fossem tão grandes lá fora, mas, quando vinham para Belo Horizonte, que estava fora do circuito de shows internacionais, elas pareciam gigantes. Era normal a gente ser sabotado por bandas grandes. Elas tinham medo das bandas de moleques, porque era uma garotada com tesão para tocar, com sangue nos olhos. Então, rolava uma sabotagem. Tiravam um pouco do volume, da luz, da estrutura. O que me incomoda, hoje em dia, é ver bandas que não são gringas ou do mainstream tratarem mal outras bandas, seja a minha, considerando que tenho 41 anos de história na música pesada, ou a de quatro moleques de 16 anos que estão começando agora. É uma atitude ruim para o mercado, para os negócios e para a ideologia do nosso movimento ou da nossa tribo, como queiram chamar. Estamos todos no mesmo barco.

Que histórias engraçadas ou bizarras você guarda na memória do tempo em que era jovem e tocava em lugares precários?
São muitas histórias. Estou no início do trabalho de redação de um livro sobre a minha vida, tendo como pano de fundo os anos que passei com o Sepultura. Hoje, sou pai de quatro filhos: uma menina de 16 anos, um rapaz de 23, um filho de 30 e um de 36, além de um neto de 8 anos. Fico imaginando um pai, hoje, tentando entender um filho de 15 ou 16 anos que chega e diz: "eu tenho uma banda chamada Sepultura. Nós tocamos death metal, somos contra a Igreja, contra o sistema, e vamos parar de estudar. Estou indo fazer dez shows no interior de São Paulo e só volto no mês que vem". Hoje, uma mãe diria: "você vai pro seu quarto estudar! Vou trancar a porta e você não vai sair!". No entanto, os nossos pais e mães apoiaram essa ideia e foram extremamente importantes na primeira fase de crescimento do Sepultura.
Houve uma vez que o Sepultura fez uma viagem a São Paulo, e o dinheiro que havia sobrado do show só dava para pagar duas passagens de trem do interior para a capital, porque resolvemos usar o resto para comprar uns sanduíches de presunto para matar a fome. Compramos duas passagens, o Paulo (Xisto, baixista) e o Max (Cavalera, vocalista e guitarrista) embarcaram, e eu e o Iggor entramos com o trem já em movimento e ficamos escondidos no espaço entre dois vagões. Naquela época, as condições eram mambembes, porque os próprios fãs produziam os shows. Aconteceu de a gente tocar num anfiteatro no interior de São Paulo, acho que foi em Araraquara, e uma multidão de metaleiros invadiu o lugar. Antes de o Sepultura entrar no palco, durante o show de abertura, o produtor foi ao microfone e falou: "Galera, a gente precisa pagar os meninos do Sepultura para eles comerem alguma coisa e voltarem para Belo Horizonte. Então, peço a todos que invadiram que saiam para comprar ingresso". Você acredita que as pessoas fizeram isso? Praticamente 90% de quem estava lá dentro saiu para comprar ingresso, sem confusão, sem precisar chamar a polícia. •
