Em busca de espaço, a cena independente da capital federal pulsa em meio aos desafios da cultura na cidade
por_Isabela Yu • de_São Paulo
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Vivendo em São Paulo há um ano, Letícia Fialho costuma brincar que leva uma “pastinha do DF embaixo do braço". A cantora e compositora, nascida em Guará, elaborou o segundo disco “Revoada Baile Canção”, lançado no final de julho, em parceria com outros músicos da cena independente brasiliense. “Com dez minutos de conversa, eu já solto: você já escutou tal artista?", divide Letícia.
Letícia Fialho
Nas andanças pelos palcos e coxias do país, ela percebeu o desconhecimento sobre o que vem sendo produzido atualmente na capital federal. “Há uma visão reducionista. As pessoas vão falar sobre política ou mencionar o Cerrado, mas nunca abordam a arte. Não é um território com um grande holofote em cima, não estão olhando pra gente, mas deveriam, porque temos tesouros musicais", diz a artista.
Letícia é um dos nomes que tentam furar a bolha e circular em outras regiões. Em seu novo trabalho, ela, que participou do songcamp 100% feminino produzido pela UBC ano passado, cria conexões entre tradições, dialogando ijexá e maracatu com a soul music dos bailes black da década de 1970. Ao propor pontes entre ritmos e épocas, a artista transmite o caráter multicultural que a formou: “A música não tem fronteira", pontua.
A mudança de cidade foi postergada até se tornar inevitável, caso quisesse fazer a sua música ecoar em outras praças. Para além dos desafios geográficos, há também um entrave prático na escassez de casas de show: “Em contraponto a essa cena tão rica, nós temos um braço institucional que freia esse movimento, fechando espaços de cultura, então o cotidiano sofre”.
CIDADE SEM FRONTEIRAS
Outra artista que precisou sair da cidade para se encontrar foi Flor Furacão. Em março, a compositora e pianista apresentou o EP “Forró Jazz do Cerrado” após uma temporada na Bahia. No trabalho, a artista usa o ritmo do forró, xote e baião com a improvisação do jazz. Antes do trabalho solo, integrou os grupos Sol da Meia Noite e Banda Delas, além de ser professora de música.
“O ‘Forró Jazz do Cerrado’ surge da minha busca por identidade musical, de me conectar com as raízes, mas também transcendê-las, fazer algo diferente a partir da raiz", conta Flor.
A mistura de linguagens foi proposital, na busca por pontes entre a música erudita e a tradição dos festejos. “Gosto da festa e da bagunça, a gente já tem que lidar com as dores todos os dias. Aqui, acabamos recebendo influência pelo que chega pra gente. Expressões tradicionais como o Boi do Seu Teodoro ou a Mestra Martinha do Coco vieram para cá durante a formação da cidade e seguem influenciando novas gerações.”
Localizada no centro do país, a cidade fundada há 65 anos recebe pessoas de os todos cantos. Não à toa, esses intercâmbios são condensados e expressados pelos artistas locais. A busca por identidade permeia a geração atual, como afirma Kirá, músico cearense, baseado no Distrito Federal: “Quando encontro meus amigos músicos, em algum momento, a gente conversa disso – qual é a identidade daqui? É algo que faz parte do pensamento artístico da minha galera.”
Filho de Manu Chao, o compositor estreou em 2020 com o EP “Semente de Peixe” e, desde então, vem desenvolvendo sua linguagem inspirada nas tradições nordestinas e nos ritmos dos países latinos. “Eu não sei qual é o resultado, estou na busca de resgatar e procurar signos e símbolos que estão por aqui. Não há nada de novo, a alma é velha, mas tento jogar com isso e encontrar caminhos", reflete o artista.
SONS E AFLIÇÕES
A questão ficou ainda mais à flor da pele após se aproximar do grupo popular Seu Estrelo, que reúne batuqueiros a fim de contar e levar adiante as mitologias do Cerrado. Mas ele ressalta que não existe uma unidade sonora, cada um encontra sua forma de manifestar essas aflições artísticas: “É uma coisa que está correndo no vento. Cada um tem o seu rolê, mas vejo palavras e sonoridades singulares que nos conectam, o questionamento está na poesia.”
Em junho deste ano, Kirá participou de uma residência artística em Toulouse, na França, no projeto de intercâmbio entre os festivais CoMA e Rio Loco. Durante a estadia, ele elaborou duas canções com a artista franco-argentina Aluminé Guerrero, e o resultado do encontro foi apresentado como show conjunto na 8ª edição do CoMA, realizada em agosto, e deve ser lançado nas plataformas até o fim do ano. Fora esse projeto, prepara-se para apresentar um single com Murica, integrante do grupo Puro Suco.
No ano passado, ele se apresentou com Ànna Moura, compositora e poeta com quase 20 anos de estrada. Campeã latino-americana em disputas de poesia falada, os Slam, ela usa a palavra para expressar os sentimentos e impressões de ser “operária das artes". Mesmo com toda essa bagagem, Ànna apresentou o primeiro disco, “Visse Verso”, apenas em julho passado. Há músicas da época em que estudava teatro na faculdade Dulcina de Moraes, outras são mais recentes.
Ànna Moura
Para ela, manter-se em contato com outros artistas funciona como uma estratégia de sobrevivência: “Acumulei poucas certezas, mas uma delas é que a coletividade é combustível para o fazer artístico". Neste ano, integrou o line-up da noite do CoMA com o Festival Sapatão, que incluiu nomes como Ellen Oléria e Haynna.
Desde 2017, o festival divide sua programação em conferência e shows, na curadoria que ressalta o talento local entre nomes consagrados. Há dois anos, o line-up tem mais de 50% de artistas femininas, como aponta o levantamento “Mulheres nos Festivais: quem ocupa os palcos brasileiros?", elaborado pela pesquisadora Tabata Lima Arruda para a revista Zumbido, do Sesc.
Kirá
“A curadoria cria nas brechas porque tem que ter os nomes que vendem ingresso, mas também aqueles que achamos importante ter", conta Luna Morena, curadora do CoMA. Fora as parcerias com outros eventos – Festival Convergências e Festival Sapatão –, houve a escalação de quem já fortalece a cultura local, como é o caso da festa Sarau Secreto, que reuniu no palco Bell Lins, Laady B, Israel Paixão e Sandra Sá.
Envolvida na programação do Cerrado Jazz Festival e Favela Sounds, Luna dedica-se à música há mais de uma década. Ainda na faculdade, organizava ocupações com bandas de amigos no teatro da faculdade Dulcina de Moraes, posteriormente envolveu-se com a produção da banda Joe Silhueta, e nunca mais parou. “Sinto falta de lugares para ver artistas que não estão prontos. Parece que o underground foi engolido, a galera está ansiosa para estar pronta, mas são esses lugares menores que fomentam o público", reflete a produtora cultural.
Foi esse comichão de que algo especial estava acontecendo, mas não estava sendo notado, que a levou ao CoMA. “Em 2018, falei para o Diego Marx (diretor artístico), a cena de Brasília está muito incrível, tem essa banda aqui e essa… Então indiquei boa parte dos artistas locais que entraram no line-up desde então. Vivemos um momento muito legal”, aponta Luna. “Sou muito bairrista, acho a nossa cena foda.”
Fora olhar para o que está sendo feito hoje, ela também se preocupa com quem ficou esquecido, então a curadora elabora uma pesquisa sobre a história da banda de frevo Trem das Cores, grupo do qual o pai foi integrante. “Lotava as ruas, e não temos registro disso. Quero documentar, mas abordar o apagamento da cultura popular e periférica. Brasília é muito pequena, acho interessante como a cena foi construída, mas também como ela continua sendo resistida.” •