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Tramitação

do PL da IA

na Câmara

pode esvaziar

direitos autorais

Especialistas, parlamentares e representante de uma big tech comentam projeto, que saiu do Senado sob aplausos da classe criativa mas, agora, sofre desidratação

por_Fabrício Azevedo de_Brasília

Especialistas, parlamentares e representante de uma big tech comentam projeto, que saiu do Senado sob aplausos da classe criativa mas, agora, sofre desidratação

por_Fabrício Azevedo de_Brasília

Quando foi aprovado no Senado, com a relatoria do senador Rodrigo Pacheco, em dezembro do ano passado , o Projeto de Lei 2.338/2023, também chamado de PL da Inteligência Artificial, gerou aplausos e celebração pela proteção do direito autoral em meio à expansão dessa tecnologia. Há alguns meses tramitando na Câmara dos Deputados, o texto agora sofre uma onda de ventos contrários aos criadores — e corre risco real de uma desidratação que prejudicaria quem cria as obras usadas no treinamento dos sistemas.

Os pontos presentes no texto original, e celebrados pelos autores são:

As empresas desenvolvedoras de softwares de IA generativa precisarão informar quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram usados para treinar seus sistemas;

Um órgão regulador da IA será criado no país e terá um ambiente experimental para que as empresas desenvolvedoras da nova tecnologia negociem pagamentos com os autores dos conteúdos que usam nos treinamentos das máquinas;

O autor poderá proibir o uso de sua obra nesses treinamentos, caso queira. Também poderá negociar se libera o conteúdo através de um contrato direto com a empresa de IA ou através de uma entidade de gestão coletiva, como a UBC e outras;

O cálculo da remuneração que os criadores receberão levará em conta o tamanho da empresa de IA, a frequência de uso do seu material protegido nos conteúdos gerados pelas máquinas e, até mesmo, a potencial concorrência que esses conteúdos farão com os autores humanos.

Fontes na Câmara sustentaram à Revista que os gabinetes de vários deputados têm sido sistematicamente visitados por lobistas em nome de big techs desenvolvedoras de IA generativa. O tom das conversas não poderia ser mais claro: em nome de um suposto “ambiente favorável” para a criação de sistemas de IA em território nacional, as empresas estrangeiras pedem que as obras possam ser usadas livremente, sem pagamento, autorização prévia ou previsão de opt-out (exclusão de obras, um direito que os autores deveriam ter). Um discurso que vem encontrando eco entre membros da comissão que analisa o PL.

“O PL da IA foi apresentado em diversos fóruns e colocou um holofote na legislação brasileira”, afirmou Sydney Sanches, advogado especialista em direito autoral e consultor jurídico da UBC, ressaltando que o caráter particularmente protetor do direito autoral, presente no texto aprovado no Senado, tem sido elogiado em diferentes países. “Mas temos observado na Câmara uma forte pressão de empresas de tecnologia para diminuir a proteção dos direitos autorais, facilitando o acesso de IAs generativas a grandes volumes de dados no país.”

RELATOR DIZ BUSCAR “EQUILÍBRIO”

O relator do projeto na Comissão Especial, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), disse que é legítimo que empresas defendam seus interesses e queiram um marco jurídico “claro e justo” para seus negócios:

“O Brasil precisa de investimentos na área, e há uma grande competição internacional para a construção das centrais de dados, os data centers. Deve haver equilíbrio entre os interesses das empresas e a preservação necessária dos direitos autorais.”

O Brasil é um mercado estratégico, mas restrições excessivas a acesso de dados podem afastar investimentos.

Luiz Moncau, do Google Brasil, pedindo a 'flexibilização' dos direitos autorais na futura Lei de IA

Outro que defende “equilíbrio” é Luiz Moncau, gerente de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google no Brasil. A empresa para a qual ele faz lobby em Brasília é uma das principais desenvolvedoras de sistemas de IA generativa no mundo. Há alguns dias, Moncau foi transparente: é preciso “flexibilizar” os direitos autorais.

“O Brasil é um mercado estratégico, mas restrições excessivas a acesso de dados podem afastar investimentos”, afirmou, anunciando supostos investimentos para seduzir os parlamentares. “O Google vai patrocinar a formação maciça de técnicos e pesquisadores de IA no país.”

Para a professora da Faculdade de Direito da UFRJ e da Academia do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), Kone Furtunato, as big techs não têm interesse em mostrar como os dados são usados. Por isso, deverão bombardear os capítulos do PL que protegem a criação humana usada para treinar os sistemas — atualmente sem qualquer regra ou pagamento.

A pesquisadora do Centro de Inteligência Artificial da USP, Cristina Godoy Bernardo, foi outra a destacar a necessidade da transparência do uso de dados.

“Como saber se um banco de dados com músicas de autor foi usado para treinar uma IA? O compositor deveria ter um canal para verificar isso, mas isso ainda não está previsto no PL”, declarou.

Sydney Sanches, por sua vez, observou que no projeto aprovado no Senado existe o mecanismo do “opt-out”: “Isso dá um maior controle para obra, mas aumentar a transparência é essencial.”

“O PL da IA enfatiza quem faz o ‘input’ para treinar a inteligência, mas o Brasil é um país de criadores, não só da música mas em diversos conteúdos como vídeo, literatura e outros. Esse patrimônio humano, que tem um conhecimento técnico e artístico, não pode ser precarizado”, sustentou.

Já Sydney Sanches observou que a argumentação de “afastar investimentos” tem um certo componente de blefe:

“Não acredito que um mercado como o brasileiro seria ignorado. Poucos países têm o potencial de energia renovável para alimentar os data centers como o nosso, além de uma população com grande consumo de redes sociais e outras plataformas digitais.”

TRABALHO E MEIO AMBIENTE

A deputada Luizianne Lins (PT-CE) expressou preocupação com essa precarização do trabalho e o excessivo consumo de energia.

“A população não pode ser penalizada sem uma contrapartida, e os direitos autorais devem ser respeitados”, apontou.

Ela disse que já há uma classe de trabalhadores precarizados que alimenta plataformas de IA. E, assim como Sydney Sanches, lembrou o quanto os data centers necessários para mover essa tecnologia consomem energia.

“O consumo de um grande data center equivale ao de uma cidade de milhões de habitantes como a própria Brasília. Precisamos de contrapartidas como compartilhamento de tecnologia e investimento efetivo em energias renováveis”, pediu.

BUSCANDO DIREITOS

Cristina Godoy, do Centro de Inteligência Artificial da USP, acrescentou que o artigo 38 do PL estabelece a responsabilidade civil de empresas de IA que causem danos durante o desenvolvimento dos seus produtos. “Isso abre caminho para que compositores e outros produtores de conteúdo busquem seus direitos juridicamente”, pontuou.

Já a professora Kone Furtunato lembrou que o projeto original colocou a pessoa humana como parte central do processo para desenvolver essas ferramentas, mas que muitas coisas só poderão ser efetivadas na Justiça com regulamentações posteriores.

“Na Europa se discute distribuir direitos autorais com uma amostragem de cerca de 10% (dos usos). É um índice muito baixo para avaliar quem deve receber esses direitos. O PL (brasileiro) não especifica isso nem quem fará essa distribuição no Brasil”, observa.

Para Sydney Sanches, há pouco interesse das big techs em investir nesse tipo de rastreamento das obras usadas nos treinamentos, pois obviamente há uma aumento dos custos para as empresas. Mas, para o pesquisador do Centro de Competência Embrapii Senai-Cimatec em Tecnologias Quânticas (QuIIN) de Salvador, e especialista em cybersegurança Vitor Lucas de Oliveira Sena, tecnologias assim já estariam disponíveis.

“Há recursos como as funções hash ou a chamada marca d’água de áudio. Isso já é usado para evitar plágios, mas a IA está avançando muito rápido e pode usar milhões de músicas para fazer uma única composição”, descreveu.

Outra preocupação é que a imensa maioria das IAs são de empresas estrangeiras, fartas em mecanismos para desrespeitar a legislação local. “Não podemos acreditar que essas empresas ou o mercado irão se autorregular”, alertou.

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