Uma série de homenagens marca os 80 anos da cantora baiana, cuja memória é celebrada em fotolivro e concertos
por_Isabela Yu, • de_São Paulofotos_Thereza Eugênia
por_Isabela Yu, • de_São Paulofotos_Thereza Eugênia
No ano em que Gal Costa completaria 80 anos (neste próximo 26 de setembro), sua memória segue viva em projetos que revisitam sua carreira. Em outubro se inicia a pré-venda do segundo fotolivro da grande fotógrafa Thereza Eugênia, desta vez, focado em imagens da cantora, baiana como ela. O projeto traz 200 fotografias, sendo 60% exclusivas de Gal, e o restante, de gente que “frequentava os camarins, os colegas dela: Simone, (Maria) Bethânia, Guilherme Araújo, Paulinho Lima, uma porrada de gente”, descreve a autora. A maioria foi feita entre 1970 e 1980, com alguns cliques raros dos anos 1960 e 1990.
“A minha vida foi conviver com a Gal, ela foi a pessoa que mais fotografei", divide Thereza. Com organização do designer pernambucano Augusto Lins Soares, o trabalho será lançado pela editora Motriz, responsável pela segunda edição do livro “Thereza Eugênia: Portraits 1970-1980” (2021), que soma 3.000 unidades vendidas. Inclusive, a boa recepção do primeiro livro e o interesse do público pelo trabalho da fotógrafa radicada há mais de 60 anos no Rio de Janeiro possibilitaram a realização deste novo projeto.
O fundador da Motriz, Alexandre Leite, tornou-se responsável pela catalogação do seu arquivo: “Dada a dimensão e a relevância do acervo de Thereza Eugênia, identificamos a possibilidade de desenvolver múltiplos volumes. A saudade de Gal, somada à proximidade do seu 80º aniversário, se encontraram neste segundo projeto. Outros volumes estão em fase de planejamento", conta o editor.
Somente da cantora, foram digitalizados 2.500 negativos. O mesmo processo foi concluído com imagens de Maria Bethânia e Caetano Veloso. “Thereza é uma amiga querida, a nossa parceria é movida por afeto e arte", conta Alexandre.
O sentimento é mútuo, pois ela não teria fôlego para viabilizar outro livro sozinha. “Se eu fosse rica, até bancava, mas vivo de aposentadoria e de uma foto ou outra que vendo. Paguei tudo no primeiro livro, gastei quase R$ 40 mil", explica a fotógrafa.
VIDA DUPLA
Nascida em Serrinha, a pouco mais de 179 km de Salvador, Thereza Eugênia estudou enfermagem na capital baiana antes de rumar para o Sudeste. Com o emprego em hospital, bancava o trabalho paralelo com fotografia. Já na virada de década de 1960 para 1970, tornou-se figura tarimbada entre o círculo contracultural carioca. Não lhe interessava a rotina de estúdio, pois preferia capturar a vida em movimento.
Ney Matogrosso: amigo de Gal e presente no livro de Thereza Eugênia
“Gostava mais de fotografar o show, porque a luz do palco estava pronta, e também gostava da luz natural", afirma. A primeira apresentação registrada sob a mira da sua lente foi ‘Comigo Me Desavim’ (1967), de Maria Bethânia, em seguida vieram Roberto Carlos, Maysa, até cair nas graças de Gal e de tantos outros – Fafá de Belém, Marina Lima, Simone, Ney Matogrosso, Alcione, Angela Ro Ro e Beth Carvalho. Foi nesse período que registrou os antológicos shows ‘Deixa Sangrar’ (1970), ‘Fa-Tal - Gal a Todo Vapor’ (1971) e ‘Índia’ (1973). “As apresentações eram como um grito contra a opressão da ditadura", lembra sobre o período.
Como observadora e participante dessa cena, ela documentava quem orbitava em torno dos artistas. “Era a turma da Gal, todo mundo ficava na praia, nas dunas de Ipanema. O povo fumava muito maconha, ela não fumava, mas tomava LSD, cogumelo, mescalina – as drogas da época. Todo mundo fazia o que queria. Os militares não se metiam com aquele bando de malucos", conta Thereza Eugênia.
O turbilhão cultural da época era captado nos negativos, toda aquela efervescência da juventude que respirava música em meio à repressão. Passados mais de 50 anos, ela mantém o mesmo posicionamento: “Sou política e crítica, mas não suporto político, tenho intolerância a eles. Você não pode achar que Bolsonaro e Trump são uma maravilha. Parece que elegem as piores pessoas do mundo.”
NOVOS TEMPOS
Há alguns anos desistiu de sair de casa munida das câmeras Leica, prefere usar a lente do iPhone. “A máquina te dá uma imagem com mais dígitos do que o celular, então ela é melhor. Paisagem e shows, sempre fiz com o maior prazer. Um dos últimos que fiz com câmera foi ‘Mais Preta do Que Nunca’ (2019), da Preta Gil", pontua, antes de lamentar o falecimento recente da filha de Gilberto Gil.
Mesmo deixando de carregar o equipamento, continua vendo apresentações no Circo Voador, viu Marina Lima e a personagem da nossa matéria de capa, Marina Sena – que incluiu uma de suas fotos de Gal Costa na capa do terceiro disco, ‘Coisas Naturais’ (2025). Já no Manouche, assistiu a Catto e Assucena. Dos megashows, foi convidada para a turnê de Caetano e Bethânia, pois cedeu fotos para os visuais do palco.
Aos 85 anos, mantém-se ativa: além das caminhadas diárias pela Zona Sul carioca, ela trabalha todos os dias e continua gostando de ver shows. Os registros das andanças são publicados em sua conta no Instagram. Com mais de 50 mil seguidores, ela intercala imagens das paisagens da orla e retratos de outrora, especialmente dos medalhões da MPB.
“Tenho preguiça, mas me esforço. Acho que, na vida, você tem que fazer alguma coisa que te interessa, porque, senão, as coisas ficam chatas", reflete a fotógrafa por telefone. Em junho, ela viajou a Recife para a abertura da exposição “Encontros”, no Instituto Marcos Hacker de Melo, com fotos do seu acervo de artistas fora dos palcos – a mostra deve desembarcar em Fortaleza em seguida.
Em casa, escuta música por Bluetooth, continua ouvindo a MPB de Dorival Caymmi e o jazz de Miles Davis. Não gosta de novelas, prefere rever os filmes de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini e Woody Allen – adora o aspecto crítico do americano. Inclusive, é apaixonada por Nova York: a primeira visita foi em 1983, quando flagrou Yoko Ono passeando com o cachorro pelos arredores do Edifício Dakota. “É o lugar que tem tudo o que você procura. É uma cidade que tem o mundo todo.”
Hoje conta que tem menos pique para viagens a longa distância, mas diverte-se olhando para trás e escolhendo o que compartilhar no perfil no Instagram. “Eu faço de acordo com o freguês. As fotos antigas dão muito mais likes do que as fotos novas", reflete a fotógrafa. Na ocasião, procurava imagens de Caetano Veloso no retorno do exílio em Londres: “Essas são as fotos que os seguidores gostam de ver. Caetano de cabelo branco, cantando com Bethânia, todo mundo já viu.”
Bethânia e Sandra Gadelha (ex de Gilberto Gil e mãe de Preta) também estão nos cliques de Thereza
EM NOME DE GAL
A memória da artista segue viva em dois livros recentes: “A Todo Vapor: O Tropicalismo segundo Gal Costa” (2023), da pesquisadora Taissa Maia, lançado pela Garota FM Books; e “Tigresa - Gal Canta Anos 70” (2025), no qual o jornalista Gutemberg Cruz analisa todos os discos da cantora da década de 1970 – disponível pela editora Noir. Uma biografia assinada pelo jornalista da revista Piauí Thallys Braga está no forno pela Companhia das Letras.
Já em setembro, mês em que Gal celebraria 80 anos no dia 26, a gravadora Biscoito Fino vai disponibilizar no streaming o álbum "Gal Costa ao Vivo no Coala", com o último show de sua carreira, realizado em 17 de setembro de 2022, no festival paulistano Coala – ela faleceu em 9 de novembro do mesmo ano. A versão audiovisual chega ao YouTube em meados do mês seguinte.
Antes, no próprio dia do aniversário da estrela, a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA) fará o concerto “Gal Total 80” na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. Com direção artística de Manno Góes, o concerto terá regência do maestro Carlos Prazeres e integra o calendário de celebrações dos 43 anos da orquestra. Essa não será a primeira vez que a instituição celebra a carreira de Gal: em 2023, “Balancê - O Carnaval de Gal” destacou o repertório carnavalesco da intérprete. •